AmazoniaHuman RightsPoetThiago de Mello - 1926-2022

o autor de ‘Os estatutos do homem’ e ‘Faz escuro mas eu canto’, entre outros livros, o poeta amazonense foi traduzido para 30 idiomas

 

Poeta que sempre lutou pela preservação da Amazônia, Thiago de Mello morreu aos 95 anos em sua casa, em Manaus, na sexta-feira (14/1). Autor de obra icônica, ele alcançou reconhecimento internacional sem jamais perder de vista o caráter regionalista em sua literatura.

 

Nascido em Porantim do Bom Socorro, no município de Barreirinha, no interior do Amazonas, em 30 de março de 1926, Thiago foi um dos escritores mais influentes e respeitados do país. Ficou famoso por usar a poesia para dar visibilidade não só às questões relativas à floresta, mas também aos direitos humanos.
Seu poema mais conhecido, “Os estatutos do homem”, foi escrito sob o impacto da ditadura militar no Brasil e se espalhou pelo mundo, traduzido para mais de 30 idiomas. “Fica decretado que agora vale a verdade/ que agora vale a vida/ e que de mãos dadas/ trabalharemos todos pela vida verdadeira”, diz a primeira estrofe.
Em 1984, publicou o livro “Manaus amor e memória”, seguido por “Amazonas, pátria da água”, de 1991, e “Amazônia – A menina dos olhos do mundo”, de 1992. Sua última obra, “Notícias da visitação que fiz no verão de 1953 ao Rio Amazonas e seus barrancos”, foi lançada no ano passado.
Em 2021, o poeta foi homenageado pela 34º Bienal de São Paulo, que usou o verso “Faz escuro mas eu canto” como tema do evento.
O verso faz parte do poema “Madrugada camponesa”, lançado em 1965. A obra, inclusive, ganhou versão musical, fruto da parceria do poeta com o compositor Monsueto Menezes.
Thiago se aproximou do universo da música também por meio de “Os estatutos do homem”, que em abril de 1985 ganhou partitura escrita pelo maestro Cláudio Santoro e abriu a temporada de concertos do Teatro Municipal do Rio de Janeiro.

ADEUS À MEDICINA

Aos 20 anos, depois de passar a adolescência o início da juventude em Manaus, Thiago de Mello mudou-se para o Rio de Janeiro para fazer faculdade de medicina, mas trocou o curso pela carreira literária. Aos 21, lançou seu primeiro livro de poesia, “Coração da terra”.
Em 1950, publicou o poema “Tenso por meus olhos” na primeira página do Suplemento Literário do jornal “Correio da Manhã”. Em 1951, veio “Silêncio e palavra”, livro acolhido pela crítica. Em seguida, lançou “Narciso cego”, em 1952, e “A lenda da rosa”, em 1957.
Naquele mesmo ano, Thiago de Mello foi convidado para dirigir o Departamento Cultural da Prefeitura do Rio de Janeiro. Em 1959 e 1960, foi adido cultural na Bolívia e no Peru. Em 1960, publicou “Canto geral”. Entre 1961 e 1964 foi adido cultural em Santiago, no Chile, onde conheceu o escritor Pablo Neruda e traduziu para o português uma antologia poética do futuro vencedor do Nobel de literatura.
Logo depois do golpe militar de 1964, Thiago de Mello renunciou ao posto de adido cultural e voltou a morar no Rio de Janeiro. Sua poesia ganhou forte conteúdo político, movido pela indignação contra o “Ato Institucional nº 1” e por ver a disseminação da tortura, empregada como método de interrogatório. Escrito mais de uma década depois, em 1977, “Os estatutos do homem” reverberava esse sentimento.

DITADURA E EXÍLIO

Perseguido pelo governo militar, o poeta amazonense retornou para Santiago, onde permaneceu exilado durante 10 anos. Nesse período, estreitou sua relação com Pablo Neruda, com quem estabeleceu amizade e parceria literária de anos.
Thiago também morou na Argentina, Portugal, França e Alemanha antes de voltar ao Brasil nos estertores do regime militar, em 1978, para se estabelecer em Barreirinha. Em 1975, foi reconhecido por sua luta em prol dos direitos humanos pela Associação Paulista dos Críticos de Arte (APCA), que o aclamou pelo livro “Poesia comprometida com a minha e a tua vida”.
Ao longo de mais de seis décadas de carreira, ele publicou 12 livros de poesia e oito de prosa. Em 1992, saiu “Faz escuro mas eu canto”; em 1997 e 2000, ganhou o Prêmio Jabuti com “De uma vez por todas” e “Campos dos milagres”, respectivamente. Anos depois, em 2018, recebeu outro Jabuti, o troféu Personalidade Literária, em reconhecimento ao conjunto de sua obra.
A editora Global, que publicava as obras do poeta, divulgou nota lamentando a morte dele. “Grande tradutor, ensaísta e um dos nomes mais influentes e respeitados da poesia brasileira, Mello ficou conhecido como ícone da literatura regional e sua perda será sentida não apenas pela sua família e aqui na Global, mas em todo o país”, diz o comunicado.
Por meio das redes sociais, o governador do Amazonas, Wilson Lima, e o prefeito de Manaus, David Almeida, decretaram luto oficial de três dias pelo falecimento do poeta.

EXPOSIÇÃO

No ano passado, a Prefeitura de Manaus realizou a exposição virtual “Thiago de Mello 95 anos de vida, poesia e amor por Manaus”, a partir de acervos pessoais e públicos do poeta, com fotos, entrevistas e vídeos, que estão disponíveis no link https://vidaecultura.manaus.am.gov.br/.

TRECHOS

OS ESTATUTOS DO HOMEM

(Ato Institucional Permanente)

“Fica proibido o uso da palavra liberdade,
a qual será suprimida dos dicionários
e do pântano enganoso das bocas.
A partir deste instante
a liberdade será algo vivo e transparente
como um fogo ou um rio,
e a sua morada será sempre
o coração do homem.”
***
“Fica decretado que todos os dias da semana,
inclusive as terças-feiras mais cinzentas,
têm direito a converter-se em manhãs de domingo.”
***
“Fica decretado que, a partir deste instante,
haverá girassóis em todas as janelas,
que os girassóis terão direito
a abrir-se dentro da sombra;
e que as janelas devem permanecer, o dia inteiro,
abertas para o verde onde cresce a esperança.”
***
“Fica decretado que os homens
estão livres do jugo da mentira.
Nunca mais será preciso usar
a couraça do silêncio
nem a armadura de palavras.
O homem se sentará à mesa
com seu olhar limpo
porque a verdade passará a ser servida
antes da sobremesa.”
***
“Decreta-se que nada será obrigado nem proibido.
tudo será permitido,
inclusive brincar com os rinocerontes
e caminhar pelas tardes
com uma imensa begônia na lapela.”