Série de retratos com personalidades gaúchas negras lembra o episódio do Massacre dos Porongos, um triste capítulo da mais longa guerra civil da história do Brasil.
Beatriz Pereira é a figura pintada em um painel de 65 metros de altura e 15 de largura em uma empena do prédio da PGE-Daer em Porto Alegre. Ela opta por não ser chamada de líder da comunidade em que vive, se diz uma voluntária popular. Seja como for, Beatriz é uma figura de referência para aqueles que moram nas ilhas na volta de Porto Alegre. Na Ilha da Pintada, onde vive, é mãe-de-santo e educadora. Além de tudo isso, é ainda presidente de escola de samba. Relembrando o passado, diz ter largado os estudos em função do racismo. Na escola, sofreu por sua cor de pele, com vergonha, saiu da escola e foi fazer sua vida.
Durante o governo imperial do Brasil, entre 1822 e 1889, ocorreu a maior e mais longa guerra civil da história do país: a Revolução Farroupilha. Movida pelas elites locais, de caráter republicano e com objetivos separatistas, a revolução ocorreu no estado do Rio Grande do Sul entre 1835 e 1845. E para combater as poderosas forças do império, os líderes da revolução recrutaram os negros escravos para que lutassem ao seu lado. Em troca, eles teriam a sonhada liberdade. O grupo, que viria a ter um papel de destaque na guerra e temido pelas forças do inimigo, ficou conhecido como Lanceiros Negros.
Conforme a guerra se estendia, os Lanceiros Negros tornaram-se um ponto decisivo para a negociação de paz. A liberdade prometida pelos líderes da revolução não era aceita pelo Império. E o impasse acabou na Batalha dos Porongos (1844). Desarmados, um esquadrão de lanceiros negros acampado foi surpreendido pelas tropas imperais.
Retratos resgatam a história
Os lanceiros costumavam vestir a indumentária típica dos pampas: sandálias de couro cru, colete, chiripá de pano. Na cabeça, ou no braço, amarravam um pano vermelho, símbolo da República. Esta peça agora veste as 19 personalidades gaúchas que se deixaram retratar nas fotos que ilustram este texto.
Inspirado pelas personalidades gaúchas negras, o fotógrafo baiano radicado em Porto Alegre Marcio Pimenta resolveu lembrar a força e a coragem dos lanceiros negros em uma série de retratos. “Neste estado conhecido nacionalmente por episódios de racismo, quis homenagear figuras históricas que levam no sangue e na pele a integridade dos lanceiros negros”, diz Pimenta.
O projeto contou com o apoio institucional Ministério Público Federal – Procuradoria Regional da República da 4a Região e da Secretária de Estado da Cultura do Rio Grande do Sul.
Jornalista de formação, Clarissa Lima é assessora de diversidade da Secretaria da Cultura do Rio Grande do Sul desde 20 de novembro de 2020. No jornalismo, tratava principalmente da diversidade racial e de gênero. Como assessora, apoiou e ajudou a construir diversos projetos com tais temáticas. Atualmente, é uma referência em cultura e diversidade no estado.
Em suas próprias palavras, Ângelo Ilha da Silva aprendeu desde cedo o valor do trabalho duro para alcançar seus objetivos. É Procurador Regional da República, professor do programa de pós-graduação e chefe do Departamento de Ciências Penais da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, autor e coautor de mais de 30 livros. Em sua trajetória, recorda incidentes pontuais relacionados ao racismo, mas reforça que essas ocasiões não o impediram de construir uma trajetória de sucesso.
Jorge Euzébio Assumpção é um dos grandes nomes da intelectualidade gaúcha. Foi professor e pesquisador na Unisinos e tem como seus maiores enfoques de pesquisa o negro no Rio Grande do Sul. É um dos maiores defensores da tese de que o negro é omitido na história do estado. Para ele, há um posicionamento ideológico de sonegação da participação afrodescendente na construção do Rio Grande do Sul.
Com mais de 30 anos de carreira na magistratura, a desembargadora Iris Helena Medeiros Nogueira é a primeira mulher e a primeira pessoa negra a assumir a Presidência do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Antes disso, ocupou o cargo de Corregedora-Geral da Justiça. Iris tem uma agenda lotada, é intensa e apaixonada pelo seu trabalho, mas não transparece cansaço. Mesmo em um meio de trabalho predominantemente masculino e branco, Iris diz não ter sofrido discriminação pelo seu gênero ou cor. Diz que é uma questão de proceder, mas também relaciona isso a sua criação. Nunca lhe foi dito que deveria agir de determinada maneira por ser mulher ou negra. Pautou suas escolhas pela sua vontade e capacidade. Assim, chegou em um dos cargos de mais alta responsabilidade na Justiça do estado.
Taís Domanski é bancária por paixão e tem a família como prioridade, desde pequena priorizou isso. A mãe e o pai são figuras importantes na sua formação. Com a mãe aprendeu que a vida não é fácil, mas que com sabedoria, tudo fica melhor. Com o pai, conta que um dos importantes aprendizados foi sobre ser preta. Até os dez anos de idade, Taís falava de si como ‘morena’. O pai, pacientemente, ensinou que Taís era preta, filha de negro e descendentes de escravos, e que deveria sentir orgulho de si. Também a ensinou a nunca deixar a cor de pele determinar o sucesso em sua vida, o que vem fazendo até hoje.
Rosane Terragno é uma empresária gaúcha dona da marca Divas Bllack, empresa focada no desenvolvimento de produtos para beleza negra. A partir do seu trabalho, Rosane abre portas para que pessoas negras possam ter sua autoestima renovada. É conhecida por receber, em sua loja no centro histórico de Porto Alegre, mulheres negras que ficam lá por horas e saem, deslumbrantes, desfilando pelas ruas da cidade.
Massacre dos porongos
Na madrugada de 14 de novembro de 1844, em Porongos, hoje município de Pinheiro Machado, no Rio Grande do Sul, lanceiros e infantes negros a serviço dos farroupilhas, que estavam em luta contra o império brasileiro desde 1835, foram massacrados, numa “surpresa” nada surpreendente para os que a teriam preparado: o barão de Caxias, comandante das tropas imperiais, e Davi Canabarro, último chefe militar dos rebelados sul-riograndenses, cuja república foi proclamada em 1836.
Os lanceiros negros eram uma tropa garbosa, que lutava a cavalo. Os infantes, em maioria negros, lutavam a pé, com suas armas de fogo. Na véspera do ataque a Porongos, tiveram a munição retirada, a mando de Canabarro, sob a alegação de que se estavam “estragando nas patronas”. As tropas imperiais, bem orientadas, caíram sobre o acampamento negro dos farrapos. Nos dias anteriores, dois alertas poderiam ter evitado o massacre se Canabarro tivesse tomado as devidas providências: uma patrulha farrapa bateu-se com uma vanguarda inimiga. Houve seis mortos, inclusive o comandante farrapo do destacamento, major Polvadeira. Nada mais indicativo de que o adversário estava nas proximidades. Além disso, a irmã do general Neto mandou um emissário avisar que imperiais haviam sido vistos nos seus campos. Canabarro ironizou: “Moringue sentindo a minha catinga aqui não vem”. Moringue era o chefe que desabaria sobre Porongos deixando por terra mais de cem negros mortos.
Lanceiros bravamente se defenderam enquanto foi possível. Infantes pelearam de mãos nuas. Eram homens, escravizados, em geral, de imperiais, atraídos pelos farroupilhas com a vaga promessa de liberdade. O processo de negociação que permitisse ao Império anistiar os farrapos esbarrava num obstáculo: a devolução dos negros aos seus donos. Alguns líderes farroupilhas temiam uma rebelião se esses homens traídos permanecessem no Rio Grande. Outros simplesmente se envergonhavam com a situação. Era preciso se livrar desses incômodos aliados. Porongos resolveria o problema ceifando vidas. Ainda cairiam prisioneiros 120 homens. Aqueles que não conseguiram fugir, uns 77, foram enviados para o Rio de Janeiro, mais tarde, na barca Triunpho da Inveja, onde se tornaram escravos da nação, alugados para todo tipo de serviço. Era costume contratar “diaristas” para levar barris de excrementos humanos ao mar. Alguns desses bravos negros teriam a possibilidade de morrer no Paraguai como “voluntários da pátria”.
Jornalista, psicanalista, radialista, advogado e escritor, Antônio Carlos Côrtes é um nome importantíssimo na militância negra do país. Em Porto Alegre de 1971, plena ditadura militar, o Grupo Palmares, liderado pelo jovem Antônio Carlos e mais cinco amigos, conseguiu emplacar o Dia da Consciência Negra para o 20 de novembro – data da morte de Zumbi dos Palmares –, e não mais o 13 de maio – data da proclamação da Lei Áurea. De lá para cá, Antônio Carlos ajudou a manter viva a Sociedade Beneficente Floresta Aurora – clube negro mais antigo do país, localizado em Porto Alegre –, foi presidente do Conselho Estadual de Cultura, publicou livros, artigos e colunas. Continuou empenhado em sua militância ao longo de sua vida. Em 2021, recebeu a medalha Simões Lopes Neto, maior honraria concedida pelo governo do Rio Grande do Sul.
Para além de cantora, Loma Pereira é apresentadora de eventos, locutora, compositora ativista e produtora de projetos na música. Sua trajetória nos gêneros musicais começa, ainda criança, com o coral, passando pela MPB, música afro-brasileira, nativista e latino-americana. Quando morou no Rio de Janeiro, gravou com Gilberto Gil e Elza Soares. No Rio Grande do Sul, foi percursora da música tradicionalista na época de Barbosa Lessa e Paixão Cortes. Ao longo de sua vida, teve muita coragem, habilidade e astúcia para tomar decisões difíceis. Vinda de uma família sem capital e filha de mãe solteira, conseguiu ingressar no mercado da música e fez parte do Movimento Tradicionalista Gaúcho, onde com destaque, mesmo em meio a um grupo majoritariamente masculino. Tanto é sua importância para a música gaúcha que, em 2019, venceu o Prêmio Açorianos de música pelo conjunto da sua obra. Confira reportagem completa.
Carioca radicado em Porto Alegre há bons anos, Jeferson Tenório é escritor. Estreiou na literatura com o romance O beijo na parede (2013). Em 2020, venceu o Prêmio Jabuti, uma das maiores premiações da literatura nacional, pelo romance O avesso da pele, livro que trata das relações raciais e identidade. Em 2022, ao realizar uma palestra em uma escola da Bahia, foi ameaçado de morte por perfis anônimos na internet.
Daniel Vicente de Medeiros é motorista do Ministério Público Federal. Em sua trajetória, enfrentou dificuldades por ser negro e ter origem humilde. Mesmo assim, se dedicou com afinco para concluir seus estudos e conseguir dar uma boa condição de vida para sua família. Hoje em dia, depois de batalhar muito, tem uma boa qualidade de vida e vive próximo àqueles que ama.
Valéria Barcellos é multiartista transgênero baseada em Porto Alegre. Em sua carreira como cantora, atriz e performer trata de negritude, gênero, diversidade, inclusão e transgeneridade. Além de sua atuação na cultura, participa de projetos sociais voltados para a inclusão de pessoas trans na sociedade. Como mulher trans e negra, Valéria por diversas vezes denunciou situações de transfobia e racismo. Para além da sua relevância no Rio Grande do Sul, já viajou pelo Brasil e outros países fazendo peças e shows.
Nascida em Porto Alegre, Daiane dos Santos foi por nove vezes medalhista de ouro em campeonatos mundiais em competições de ginástica artística. Dentre suas conquistas, carrega o feito de ter sido a primeira ginasta brasileira – dentre homens e mulheres – a ganhar uma medalha de ouro no Campeonato Mundial, em 2003. Além disso, foi a primeira ginasta do mundo a realizar o duplo twist carpado e o duplo twist esticado. Ambos os movimentos foram nomeados em sua homenagem, hoje chamados de Dos Santos I e Dos Santos II. Após sua carreira exemplar na ginástica artística, Daiane decidiu se dedicar a novos projetos em 2012. Hoje é empresária e promove projetos sociais para a disseminação do esporte entre camadas populares e encontrar atletas de alto desempenho.
O massacre de Porongos foi denunciado pelo tenente Caldeira, que fora do corpo de Lanceiros Negros. Uma carta com a combinação de Caxias e Canabarro seria descoberta pelo grande historiador Alfredo Varela. Apesar de ter levado a assinatura de Caxias, tudo passaria a ser desmentido por cultores da Revolução Farroupilha com base em depoimento dado, em 1900, por um veterano da guerra civil, que afirmaria saber por fonte fidedigna que a carta fora forjada por Moringue para intrigar Canabarro com os seus e apressar o fim do conflito. Caxias teria assinado, depois do massacre, por astúcia. Os demais avisos, detalhes e documentos permanecem inquestionáveis, assombrando o passado.
Em carta ao seu amigo Silvano, em 27 de novembro de 1844, Bento Gonçalves, o maior líder dos farroupilhas, diria: “Foi com a maior dor que recebi a notícia da surpresa que sofreram o dia 14 deste! Quem tal coisa esperaria por uma massa de infantaria cujos caminhos indispensáveis por onde tinha de avançar eram tão visíveis que só poderiam ser ignorados por quem não quisesse ver nem ouvir, ou por quem só quisesse ouvir a traidores talvez comprados pelo inimigo”.
Porongos é uma mancha terrível que transforma a Revolução Farroupilha em capítulo de uma “história regional da infâmia”.
Juremir Machado da Silva é escritor, tradutor, jornalista e professor universitário graduado em história e em jornalismo.
Marcio Pimenta é fotógrafo colaborador da National Geographic.
Porto-alegrense, Roger Machado é atual técnico do Grêmio. Ingressou no Tricolor Gaúcho como jogador aos 17 anos. Depois de um bom período em campo pelo Grêmio, pelo qual foi campeão da Libertadores em 1995, jogou no Fluminense e no D.C United, nos Estados Unidos. Foi técnico pela primeira vez no Juventude, onde ficou por um curto período. Regressou então para o Grêmio, onde garantiu a vaga do Tricolor Gaúcho para a Libertadores. Depois passou por Atlético Mineiro, Palmeiras, Bahia, Fluminense antes de voltar ao Grêmio em 2022. Quando à frente do Bahia, recebeu a medalha Zumbi dos Palmares, alta condecoração concedida pelo município de Salvador pelo combate ao racismo. Roger é notável por sua luta contra o racismo – em coletivas de imprensa, não é raro vê-lo falando sobre o combate ao racismo e a desigualdade social. Roger encontra tempo em sua vida corrida para apoiar e incentivar projetos sociais e culturais pautando o antirracismo.
Luciana Conceição Lemos da Silveira é professora da rede municipal de ensino de Porto Alegre, socióloga e mestre em desenvolvimento rural. Atua na área da educação popular e social, como professora tutora em ensino à disntância, laudos e pesquisas socioeconômicas em comunidades tradicionais. Além da carreira como professora, tem experiência na especificidade étnica negra e na identidade quilombola, e atua junto ao movimento social negro – Ubuntu Ukama. Diariamente, Luciana se empenha em educar crianças vindas dos mais variados cenários e com poucos recursos – um dia a dia intenso.
Professor de história, ativista e artista, Waldemar Moura Lima – Mestre Pernambuco – é intelectual e uma liderança no movimento quilombista. O quilombismo é um movimento que tem como base a mobilização da população negra latina a partir de suas próprias bases culturais e históricas. No âmbito da cultura, tem uma longa trajetória como agitador cultural, sendo criador de grupos carnavalescos, bandas e grupos musicais. Mestre Pernambuco é uma importante referência de ativismo e cultura no estado do Rio Grande do Sul.
O senador Paulo Paim tem atuação política desde a adolescência. Iniciou essa carreira como presidente do Grêmio Estudantil na época da Ditadura Militar, quando organizou mobilizações contra o regime e acabou sendo convidado a se retirar da escola. Desde então, já foi Deputado Federal e Senador por múltiplos mandatos. Tem autoria em projetos pela igualdade racial e em 1989 participou da comissão brasileira que visitou a África do Sul para a libertação de Nelson Mandela. Sua trajetória é marcada pela luta contra o racismo e pela garantia dos direitos dos trabalhadores e de minorias.
Jéssica Lima é enfermeira formada pelo Centro Universitário Metodista – IPA, onde recebeu bolsa integral por meio de ações afirmativas. Tem 11 anos de experiência em atenção primária em saúde no município de Porto Alegre e atua hoje como gerente de unidade de saúde do Hospital Divina Providência. Já recebeu prêmio de Mulher Negra que faz a diferença no SUS. Durante a pandemia, atuou na linha de frente no combate ao coronavírus.
Matheus Gomes é vereador de Porto Alegre. Atua desde os 17 anos no movimento negro, estudantil e periférico, e atualmente tem inserção em diversos coletivos e entidades da comunidade negra. É graduado e mestre em história pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Em 2020, foi eleito vereador com a quinta maior votação na capital gaúcha. Desde que assumiu o cargo de vereador, Matheus recebeu sete ameaças de morte.